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A criação do outro na cultura do montanhismo

É razoável compreender que o montanhismo não é um esporte isolado do mundo. A identidade do montanhismo, originalmente ferramenta de domínio territorial, pauta-se em práticas imperiais que são manifestas até hoje.


As narrativas de aventura e montanhismo revelam muitos desses elementos que compõem a cultura dos esportes outdoor. Algo comum nessas obras e que passa despercebido é a construção identitária dos povos nativos. Muitas vezes alijados da centralidade dos feitos hercúleos do montanhismo, são também representados sob uma relação de hierarquia.


Conscientes de seu encanto, elas riem mostrando todos os dentes. Basta isso para meus companheiros se levantarem depressa.

- São apetitosas - diz Terray, que se enternece.

- Gosto mesmo é das botas que elas usam - diz Lachenal, mais simpático.

Logo, logo se forma uma multidão em torno dos tibetanos. De repente, começa uma dança endiabrada. 

Os dançarinos se destacam contra um magnífico fundo de montanhas nevadas. O balé que parece expressar o dualismo eterno entre a alegria e a dor, a vida e a morte, é perfeitamente ritmado. A estética é rude, primitiva. A dança sempre reflete a alma do povo. Esta apresenta um interesse indiscutível.

(Annapurna, Maurice Herzog)


Já nas primeiras narrativas de viagem até Krakauer, em No Ar Rarefeito(1997), bem como nos escritos de sua inspiração, J. Conrad(1857-1924), os povos nativos são tratados como inferiores, incivilizados, incapazes e insolentes. É a evidente manifestação da lógica imperial, que consiste em retirar o sentimento de alteridade e qualquer qualidade humana do outro de forma a angariar eficácia no ato de dominar. 


No crepúsculo, entramos na aldeia miserável de Tinigaon. Os nativos muito primitivos são de uma sujeira repugnante… Até então, nenhum deles tinha visto sahibs. Garfos? Que criaturas complicadas!

(Annapurna, Maurice Herzog)


Seus peitos esquálidos arfavam juntos, as narinas dilatadas estremeciam, os olhos fixavam, petrificados, o alto da colina. Passaram a cerca de quinze centímetros de mim, sem me dirigirem um olhar, com indiferença total, fúnebre, de selvagens infelizes.

(Coração das Trevas”, Joseph Conrad)


Por isso, é comum que o outro, o diferente, seja visto como um selvagem, atrasado, para que não haja qualquer resistência às práticas coloniais. Em Annapurna(1951) é nítida essa representação. Nota-se que os primeiros conquistadores dos 8 mil, referência do montanhismo moderno, percebem os povos nativos do Himalaia como incivilizados, repugnantes e primitivos; o ato é tão flagrante que são passíveis até de serem escravizados. 


Aos poucos, nossa atitude endurece! Por mais que ofereçamos um salário acima do corrente, logo percebemos que, se não chegarmos a preços proibitivos, quanto mais formos andando para as zonas de denso cultivo maiores serão as dificuldades, até chegarmos à impossibilidade total de contratar cules. Embora repudiando a idéia de bancar os negreiros, meus companheiros são obrigados a apelar para o “recrutamento voluntário”. O método é simples: trata-se de pegar a mão-de-obra ali onde ela está, agarrá-la pelos fundilhos das calças e colocá-la com a maior suavidade debaixo dos fardos e das macas. Os carregadores reclamam alguns minutos, mas tudo termina em sorrisos. Terão direito a uma quantidade de rupias que compensará o que houvesse de arrependimento e má vontade iniciais. 

Os sherpas percebem muito bem a manobra e imagino que não somos a primeira expedição a utilizar esse método.

(Annapurna, Maurice Herzog)


O episódio de escravização, dito “recrutamento forçado”, dos sujeitos, que choram e se desesperam, é lastimável, e atende à lógica colonial manifesta na conquista da montanha. Dadas as proporções, o episódio narrado é semelhante às conquistas das Américas, que impuseram aos indígenas uma trajetória perversa em favor daqueles que, por um ímpeto metafísico, se valiam da licença inata de navegar os oceanos e explorar terras longínquas.


E nisso eu tinha de cuidar do selvagem que era o foguista. Tratava-se de um espécime melhorado; era capaz de acender uma caldeira vertical. Estava lá, debaixo de mim, e, acreditem, olhar para ele era edificante como ver um cão em uma paródia, de calções e chapéu de plumas, andando sobre as patas traseiras. Alguns meses de treinamento haviam bastado para aquele sujeito de primeira. Ele apertava os olhos diante do manômetro de água num esforço evidente de intrepidez, e tinha dentes limados também, o pobre diabo, e a lanugem de sua cabeça raspada em desenhos esquisitos, e três cicatrizes ornamentais em cada uma das bochechas. Era para ele estar batendo palmas e sapateando na margem, e em vez disso se empenhava no trabalho, servo de uma feitiçaria estranha, cheio de conhecimento construtivo. Era útil por que tinha sido instruído

(Coração das Trevas”, Joseph Conrad)


O que está manifesto nas literaturas de aventura não é um acaso. Trata-se do retrato da violência perpetrada contra os povos das montanhas, o que persiste até o presente momento. É uma forma de os desumanizar e os colocar à margem da construção histórica do montanhismo, muito embora sem eles nenhuma conquista no montanhismo tivesse sido possível.



Artigo de João Ricardo da Costa Gonçalves, graduado em Letras e mestrando em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Revisão de texto: Gabriela Ghizzi Vescovi


 
 
 

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