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Risco Não Se Relativiza

Por Rafael Precioso.


É comum ouvirmos, quando o assunto são as práticas outdoor, a frase: “Acidente acontece em qualquer lugar, até na porta de casa”. À primeira vista, parece inofensiva , uma tentativa de tranquilizar ou encorajar quem tem receios diante dos riscos da natureza. Essa frase costuma surgir em rodas de conversa entre montanhistas, organizadores de trilhas ou até mesmo profissionais do ecoturismo quando alguém questiona a segurança de determinada atividade. Mas essa comparação carrega uma distorção perigosa: ela relativiza a periculosidade de ambientes que, por sua própria complexidade, envolvem riscos objetivos e demandam responsabilidade técnica, consciência coletiva e preparo.


Ambientes naturais não são iguais à calçada da sua casa. Na natureza, lidamos com mudanças climáticas abruptas, isolamento geográfico, ausência de sinal, socorro distante, exigência física e emocional, além da imprevisibilidade do terreno. Tudo isso exige planejamento, equipamentos adequados, tomada de decisão estratégica e sensibilidade para o coletivo. Quando dizemos que “o risco é igual em todo lugar”, estamos nivelando por baixo e, mais ainda, apagando as desigualdades sociais que moldam o acesso à segurança e ao lazer.


Quem pode minimizar o risco de uma trilha remota comparando-o ao risco de caminhar até a padaria geralmente fala de um lugar de privilégio. É preciso lembrar que a experiência do risco varia radicalmente dependendo da classe, raça, gênero, corpo e território. Para algumas pessoas, atravessar a cidade já é um risco diário. Para outras, estar em um parque natural é um privilégio acessado com segurança, equipamentos, guias e tempo livre. Fingir que o risco é “democrático” é ignorar que o acesso à gestão de risco também é atravessado por condições materiais e simbólicas.


Essa relativização se insere também numa lógica de apagamento das desigualdades sociais. É preciso lembrar que o direito ao risco e à segurança não está igualmente distribuído. Pessoas em situação de vulnerabilidade, como moradores de periferias, pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, historicamente sofrem com a negligência do estado, inclusive no acesso à saúde, à segurança e ao lazer.


Logo, quando uma pessoa com todos os privilégios sociais naturaliza o risco de uma trilha de alta montanha da mesma forma que o risco de “sair de casa e ser assaltado”, ela desconsidera as diferentes posições sociais a partir das quais esses riscos são experienciados.


Além disso, essa naturalização do risco revela uma romantização da aventura que está profundamente enraizada em uma lógica colonizadora de dominação da natureza. Como analisa David Harvey, o capitalismo incorpora espaços naturais como mercadoria, transformando-os em palco de consumo e apagando seus riscos reais humanos e ambientais. Quando reduzimos o debate sobre segurança a uma frase feita, desresponsabilizamos tanto os organizadores quanto os participantes das atividades outdoor, desconsiderando a importância de construir uma cultura do cuidado.


Essa cultura do cuidado passa por reconhecer que risco não é um acaso, mas um dado da realidade que precisa ser compreendido e gerido. E que segurança não é um detalhe: é um direito. Bell hooks nos lembra que todo processo educativo precisa partir da escuta dos saberes silenciados. Isso vale também nas práticas de educação ao ar livre, onde muitas vezes se prioriza a performance e o desafio físico em detrimento da escuta, do acolhimento e da consciência de grupo. Boaventura de Sousa Santos reforça que o conhecimento válido não é só o técnico, mas também o experiencial, aquele que nasce das vivências marginalizadas, dos corpos que historicamente foram excluídos desses espaços.


Levar pessoas para a natureza é, portanto, um ato político. É preciso reconhecer que nem todo mundo parte do mesmo lugar, nem em termos simbólicos, nem em termos de risco. E que cuidar não é tirar o desafio, mas garantir que ele seja acessado com consciência, preparação e respeito.


Porque sim, acidentes podem acontecer em qualquer lugar mas os níveis de exposição, a capacidade de resposta e o impacto de um acidente variam enormemente de contexto para contexto. E ignorar isso não nos aproxima da liberdade; nos afasta da responsabilidade.


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